domingo, 4 de agosto de 2013

Pela imediata aplicação do Estatuto da Criança e do Adolescente no Brasil

O problema da violência permanece sendo uma das principais preocupações do povo brasileiro. As diversas esferas de governo (federal, estadual e municipal) vacilam em construir políticas de segurança pública que possam responder de forma mais contundente aos desafios colocados à sociedade. Na mídia, o tema continua a ser explorado de forma espetacularizada, disseminando uma visão preconceituosa e distorcida da questão. Em geral, a pauta relacionada ao tema é tomada por propostas de maior uso da força pelas polícias e pelo imediato endurecimento das leis, com a finalidade de pôr fim à impunidade. Tais propostas não têm surtido efeito prático, embora ampliem em muito os gastos públicos[1].

O retorno do debate a respeito da maioridade penal não foge desse cenário e é por isso que um conjunto de organizações, grupos e movimentos vem se mobilizando para qualificar a discussão, evidenciando a necessidade de avançarmos em políticas que promovam a garantia de direitos sociais de crianças, adolescentes e jovens e não o contrário. São setores da sociedade que entendem que a construção de políticas de segurança pública não deve ser pautada somente em contextos de maior comoção, a partir do sentimento de revolta das famílias que perderam seus filhos. Não porque a dor de pais e mães seja menos legítima, mas porque nessas situações a elaboração cuidadosa e responsável de saídas coletivas para o problema da violência acaba sendo substituída pelo imediatismo, pelo sentimento de vingança e raiva generalizada, facilmente manipuláveis pelo oportunismo político.

É necessário qualificar o debate com base no acúmulo de conhecimento a respeito do tema e valorizar as principais conquistas obtidas no campo dos direitos, em especial o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). O ECA é um marco num país com uma quantidade expressiva de crianças e adolescentes que vivem em contextos de altíssima vulnerabilidade social: morando nas ruas, em situações de extrema pobreza, vítimas de violência doméstica e abuso sexual. Ele é fruto da luta intensa de movimentos sociais e dá à sociedade a oportunidade de garantir às novas gerações uma situação mais favorável para seu pleno desenvolvimento, tendo gerado avanços importantíssimos desde que se tornou lei. No entanto, a verdade é que a sociedade brasileira não conseguiu até o momento fazer a real aplicação do que está previsto no seu texto. Ele não é prioridade. Obviamente, isso vem resultando em um conjunto de problemas e deficiências que podem ser determinantes na vida de algumas crianças e adolescentes brasileiros.

Ao invés de recuperarmos o sentido maior do ECA e de finalmente dar a ele o peso e a prioridade necessária, alguns setores procuram desqualifica-lo, como se a proteção dessas novas gerações fosse matéria menor ou fruto de um idealismo ingênuo. Esses setores consideram ter respostas mais eficientes em relação à prevenção da violência: ao invés de garantir direitos, punir o adolescente por meio da redução da maioridade penal. A tese é de que esses meninos e meninas deixarão de cometer crimes se estiverem diante da possibilidade de parar atrás das grades.

Mas, afinal, qual seria o real efeito da redução da maioridade penal? Não há nenhum estudo científico que comprove que adolescentes deixariam de cometer crimes pelo temor de ir para a prisão comum, como se as medidas socioeducativas não fossem suficientes para responsabilizá-los. Há, na verdade, a experiência de países como a Alemanha e Espanha, que viram os índices de criminalidade aumentar após o rebaixamento da maioridade penal e voltaram atrás, reestabelecendo o limite dos 18 anos. No contexto brasileiro, em que o sistema prisional apresenta um conjunto de graves deficiências (altos índices de reincidência, presença de facções criminosas, superlotação, entre outras), não há indício algum de que teríamos maior sucesso.

A maior parte dos estudos modernos tem indicado que a violência é, sobretudo, uma produção social e tem uma forte relação com a ausência ou insuficiência de políticas públicas e com a falta de garantia de direitos sociais. Nesse sentido, é exatamente a população mais negligenciada que mais sofre com o problema da violência, como é o caso da juventude negra.

Segundo dados do Ministério da Saúde a respeito do ano de 2011, 35,2% das vítimas de homicídio naquele ano eram negros com idade entre 15 e 29 anos de idade. Além disso, pesquisas recentes identificaram que a maior parte das pessoas presas por crimes relacionados a drogas são homens, jovens com idade entre 18 e 29 anos, negros e pardos, com escolaridade até o primeiro grau completo, e sem antecedentes criminais. O próprio presidente do STF, Joaquim Barbosa, reconheceu que o judiciário tende a condenar com maior frequência os negros e pobres[2]. Isso dado, a opção por medidas repressivas só contribuirá para agravar a estigmatização e criminalizar esse segmento, sem enfrentar a enorme dívida social para com essa população.

Contextos violentos e desiguais continuam a produzir sujeitos violentos. A não garantia de direitos básicos a adolescentes torna-os mais facilmente incorporáveis pelo crime organizado. Para reduzir índices de violência é imprescindível vencer os obstáculos que estão postos à efetiva implantação do Estatuto da Criança e do Adolescente, bem como avançar na implantação de políticas públicas dirigidas a jovens. É preciso tratar o problema da violência na sua complexidade: com políticas sociais, econômicas, culturais e também com uma política de segurança pública responsável. Se a proposta de redução da maioridade penal não incide sobre as reais causas do problema, não poderá, portanto, solucioná-lo.

Iniciativas como o Movimento 18 Razões, são fundamentais para que a sociedade brasileira possa tomar consciência, para além de jargões simplistas e soluções fáceis, que a saída para a violência só será possível com o aprofundamento da democracia e com maior respeito aos direitos humanos. A proposta da redução da maioridade penal é inevitavelmente marcada por uma indignação seletiva, que ignora as violências sofridas pelas camadas mais pobres e que reproduz um discurso elitizado, que tenta se apresentar como novo, mas que repete o mesmo padrão de políticas que superlotam presídios, mas não conseguem dar maior segurança à sociedade.

Acreditamos que a recente indignação deve se transformar em firme comprometimento com nossas crianças, adolescentes e jovens, afirmando seus direitos e garantindo a essas pessoas uma socialização saudável. Caminhando nesse sentido, valorizando a vida e enfrentando nossos reais obstáculos, conseguiremos resultados muito mais concretos.

[1] Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública o custo destas políticas ultrapassam R$ 60 bilhões/ano.
[2] A afirmação foi feita durante Congresso sobre liberdade de imprensa na Costa Rica, em maio de 2013.


Foto: Unicef