sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Qual é o caminho para o investimento social árabe?


Atallah Kuttab*

Sem sombra de dúvida, a Primavera Árabe influenciará todos os aspectos da vida na região, incluindo o investimento social de lá. Historicamente os fundos, grande parte de origem religiosa, forneciam uma forma de doação sustentável para (as muito necessitadas) áreas sociais como educação e saúde. No entanto, recentemente, as doações têm sido mais dirigidas para a caridade sendo a maioria do governo, paternalista e sem estudo prévio.

Recentes mudanças para desenvolver uma infraestrutura filantrópica na região têm dado mostras de progresso, porém os eventos do ano passado demonstraram que isto não é suficiente. Nas condições atuais, as pessoas demandam justiça e o “controle da agenda”. Isto requer uma nova forma de transparência entre os doadores e os beneficiados. Assim, as fundações ocidentais precisarão de uma orientação local para garantir que estejam alinhadas às necessidades locais e não aos desejos do doador.

Nos anos recentes, o ímpeto filantrópico, levado pelo surto no setor de fundações privadas, tem sido guiado principalmente por um discurso anglo-saxão não enraizado na cultura local. Meus esforços, direcionados à construção de uma infraestrutura filantrópica nos últimos seis anos, por meio de instituições como os Fóruns do Fundo Árabe e a SAANED para Aconselhamento Filantrópico, tiveram o modesto objetivo de fomentar a habilidade de aprender sobre as outras regiões, desenvolver um novo discurso regional e revigorar as tradições e práticas locais.

Desta forma, o setor da  filantropia local poderá encontrar soluções sustentáveis para os problemas crônicos: falta de educação de qualidade, alto desemprego dos mais jovens, ausência de democracia, falta de espaço para que os cidadãos possam se expressar, etc.. O progresso, se houve, era para ser gradual e sem dramas. Só que a Primavera Árabe mostrou que os árabes não podiam esperar.

A onda de protestos na região árabe desencadeada pelos eventos na Tunísia, no ano passado, passou a ser um “tsunami” movimentando-se de um país a outro. Depois de ignorar a população por anos, alguns governos estão admitindo reformas para estabelecer os direitos básicos dos cidadãos, enquanto outros lutam ainda para manter o velho sistema. Pessoas jovens de 15-24 anos de idade representam mais de um terço da população da região e são elas que continuam na crista deste tsunami.

O que tem acontecido nos últimos meses na região árabe foi mais do que mudanças cumulativas acontecidas nos últimos 50 anos. Pela primeira vez, na história moderna, as sociedades árabes estão fazendo demandas, como Fateh Azzam afirma neste artigo, onde os princípios e os padrões dos direitos humanos fazem parte significativa do conteúdo de “justiça”.

O setor de investimento social, especificamente as fundações, tem sido lento para reagir. No entanto, muitas atividades têm acontecido nestes últimos meses para orientar os seus esforços. A reunião do Fórum de Fundações Árabes em Beirute, em maio, e as sessões no Centro de Fundações Europeias, na reunião anual de junho, em Portugal, recomendaram a convocação de uma conferência de fundações interessadas em promover mudanças democráticas na região (fazendo questão de aprender de outros que passaram por experiências similares na América do Sul, América Central, Leste Europeu e África do Sul) e expandi-la no espaço público para permitir que as fundações funcionem livremente e promovam uma cultura de cidadania e compromisso cívico.
 
A que o setor deveria aspirar?
Numa sessão em que eu era o moderador no Grantmakers East, fórum em Riga, no inicio de outubro, alguém fez uma pergunta muito pertinente. As revoluções coloridas da Europa Central e do Leste olhavam para os modelos econômico-sociais do Ocidente. Onde os países árabes e especificamente seus setores filantrópicos procuram modelos para depois de suas “Primaveras”?
Não existe uma resposta fácil.
O modelo ocidental permanece atrativo para muitos na região árabe, uma impressão que foi reforçada pelo Presidente Obama  em sua viagem para o Cairo e em suas declarações simpatizantes sobre as aspirações árabes. No entanto, os EUA e alguns países europeus (que recentemente bloquearam a candidatura Palestina à ONU) têm abalado a crença nos padrões ocidentais de governança. Enfim, parece que mostra que os valores humanos não se aplicam igualmente a todas as pessoas e de fato param quando chegam a Israel.

Atribuam a Amine GhrabiLikewise, o fato de multilaterais como o Banco Mundial e o FMI, em setembro de 2010, citarem países como a Tunísia, modelo a ser seguido na implementação de programas estruturais, minar a integridade de essas instituições.
Doadores e fundações que trabalham ou tem intenções de trabalhar na região levam os seus pacotes governamentais fazendo com que as pessoas suspeitem dos seus planos e vejam um cinismo em seus valores. Para mitigar isto, eles precisam ouvir as vozes da rua. As pessoas da região árabe têm aspirações pelos modelos ocidentais de tratamento aos cidadãos, de democracia, de transparência e de responsabilidade;  porém sentem que esses valores são muito superficiais e que o apoio ocidental não chegará necessariamente: irá para aqueles governos que os circunscrevem a fundo, mais para aqueles que melhor apoiam os interesses ocidentais.

Em todo este novo paradigma, as pessoas esperam e exigem o “controle da agenda”, o que requer um novo nível de transparência na relação doador-beneficiado. Se a filantropia local não apoiar isto, ficará desacreditada. Elementos chave de apoio devem  focar no seguinte. 
 
Mulheres
As mulheres têm uma função chave na revolução do Iêmen, da Tunísia, do Bahrain e do Egito; no entanto, isto não está refletido na representação dos conselhos de transição que se formaram. Ebba Augustin assinala no seu artigo a pergunta levantada por muitas mulheres egípcias: “ A revolução foi boa para nós?” É parte da justiça advogada pela Primavera Árabe que as mulheres deveriam continuar a desempenhar o papel de liderança que merecem e a filantropia deveria endossar isto.
Claro que não haverá um acordo universal em todos os aspectos deste tema quer seja dentro do setor ou fora dele. Por exemplo, o reino da Arábia Saudita foi recentemente escolhido para a reunião anual de redes sociais das fundações árabes e a questão que surgiu foi se a segregação de sexo durante a reunião (como é prática na Arábia Saudita) seria tolerada. Na prática, como pode funcionar uma rede com essa segregação?
Teoricamente, a discussão gira em torno de se o local que restringe a mistura de homens e mulheres deveria, por princípio, ser evitado. Enquanto anos atrás isto passaria despercebido (devido à ideia prevalecente dentro do setor de que se deve assumir compromissos e que as mudanças vêm aos poucos), a barreira foi criada e haverá mais vozes contra a aceitação dessa exclusão. As organizações filantrópicas precisam fazer escolhas difíceis para acompanhar o estado de ânimo das ruas.

Jovens
Com já mencionei, a juventude está na crista deste tsunami e continuará até que os países árabes lhes ofereçam oportunidades limitadas. No entanto, em lugares onde as eleições estão programadas, alguns novos partidos políticos representando a juventude optam por não apresentar candidatos e continuar conscientizando a população sobre o  direito ao voto e da eleição de seus representantes. Outros se candidatarão apesar de não estarem bem organizados ou serem experientes politicamente como são os grupos políticos tradicionais.
O setor filantrópico deveria continuar dando apoio a estes grupos jovens (com ênfase em temas de sexo) permanecendo como participantes ativos e apoiar programas que forneçam oportunidades de emprego e de comprometimento cívico para a juventude.

Arrecadação de recursos locais
Em 2005, alguns amigos e eu decidimos estabelecer o Fundo Árabe de Direitos Humanos. Havia a convicção entre nós de que era necessário um movimento de direitos humanos em nossa região; porém este foi financiado por uma maioria estrangeira. A nossa intenção era a de encontrar recursos locais e refutar as frequentes críticas feitas por governos que as organizações sociais árabes de direitos humanos são ferramentas do Ocidente, tentando fixar normas e ideais estrangeiros. Até agora o nosso sucesso tem sido limitado; os doadores corporativos e individuais ainda se esquivam dos temas de direitos humanos.
 
Enquanto isso, a Primavera Árabe tem colocado o tema no centro do pleito e, de fato, é uma das demandas chave da revolução.  Em todas as reuniões que participei nos últimos nove meses, existe uma frustração profunda entre as organizações sociais devido ao fluxo de fundos de fora da região não estar balanceado por fundos locais deixando a sua credibilidade ameaçada. O setor filantrópico precisa receber e mobilizar mais fundos locais. 

Vale esperar para ver se, num clima político e economicamente adverso, os negócios evoluirão para práticas socialmente mais responsáveis e que aloquem alguns dos seus recursos para apoiar causas sociais. A experiência das fundações do Ocidente a este respeito pode ser muito útil.

Uma história encorajadora é que, antes e durante a Primavera Árabe, a maior distribuição de doações era para dar suporte a famílias; porém, recentemente, estas foram desviadas para dar suporte aos movimentos de oposição que derrubaram o regime líbio e as pessoas estão tentando fazer o mesmo na Síria. Foi comovedor ouvir a história de uma jovem líbia morando na Turquia, que vendera toda a  propriedade herdada para ajudar com assistência médica os líbios que chegavam à Turquia, a qual mobilizou milhares de dólares da diáspora. Ouvem-se histórias similares da Tunísia e do Egito.

Enquanto não se pode chegar a conclusões claras pela falta de dados, a diáspora terá um papel ainda mais importante no futuro do desenvolvimento de seus países de origem e na reconstrução de uma ponte entre a região árabe e seus países adotados.

Preservando a diversidade de culturas e o respeito pelas minorias
As ideologias tradicionais não foram a força motriz por trás da Primavera Árabe. Os fatores comuns foram a assertividade da integridade, o direito à democracia e à justiça social. Isto gerou uma diversidade de movimentos que subordinou tendências políticas (religiosas, seculares ou étnicas) a aspirações humanas comuns. As minorias, sejam bérberes da África do Norte (Líbia, Tunísia e Marrocos), coptas no Egito ou curdos na Síria, estão na frente da revolução. Tem havido retrocessos como na explosão de sectarismo contra os coptas no Egito no começo de Outubro, mas assim que esses desvios acontecem as pessoas se unem e mostram solidariedade.

Nos últimos sessenta anos, a sociedade árabe tem ignorado as minorias étnicas no seu miolo e por isso perdeu as suas diversidade e riqueza.  Como resultado da Primavera Árabe as minorias étnicas e religiosas estão sendo reconhecidas por desempenhar um papel chave nas mudanças sociais. A filantropia árabe está sendo reformulada e não simplesmente rotulada como filantropia islâmica. Todo este desenvolvimento está trazendo uma riqueza sem paralelo a essas sociedades desde o domínio árabe na Espanha. Estas necessidades devem ser preservadas e protegidas. A filantropia tem um papel preponderante no apoio ao desenvolvimento de atividades baseadas na diversidade de cultura e respeito às minorias.

Ambiente legal e regulatório
A falta de leis amigáveis que apóiam as organizações sociais é o calcanhar de Aquiles do movimento filantrópico na região árabe. A maioria dos estados árabes está abafando os trabalhos das OSCs. Todos os países árabes possuem leis restringindo a liberdade de associação e leis draconianas controlando o recebimento e gastos de fundos. Como resultado, a maioria das fundações árabes (as não ligadas às realezas) tem se registrado na Europa ou nos EUA para proteger as suas dotações. As organizações filantrópicas pan-árabes (como o Fundo Árabe para Artes e Cultura, O Fundo Árabe para Direitos Humanos e o Fórum da Fundação Árabe) estão incorporadas na Europa para poder trabalhar em mais de um país árabe.

Novas e transparentes leis apoiadoras ao que as organizações sociais estão tentando fazer são necessárias. Em vez de esmaga-las, os governos deveriam permitir que estas continuassem a promover uma ampla variedade de ferramentas de responsabilidade social de maneira que os cidadãos pudessem ser os olheiros do desempenho do governo e participassem ativamente na construção da nação. Mandeep Tiwana afirma que os doadores deveriam apoiar as OSCs de forma a respeitar os pormenores da sociedade civil local e construir amplas coalizões cívicas em vez de repetir os experimentos fracassados de transplantar as ONGs do ocidente para sociedades pós-comunistas como aconteceu na Europa Central e Oriental.

Na minha visão, o setor da filantropia precisaria trabalhar em dois níveis: primeiro,  pressionar continuamente por mudanças das leis prevalecentes para fazê-las mais receptivas ao setor filantrópico. Segundo, desenvolver uma maior transparência e responsabilidade no setor propriamente dito de forma que torne mais difícil para o governo encontrar justificativas para criar leis mais restritas para regulá-lo, como parte de sua própria legitimidade.

Aprendendo com as experiências de outros 
A região árabe pode aprender de outras regiões que tem experimentado mudanças, especialmente na Europa Central e do Leste. Há muita coisa para aprender em termos do que deve ser copiado e do que deve ser evitado. Estou de acordo com o argumento que se deve evitar a importação simples das lições das transições de outras regiões e deve-se levar em consideração os fatores locais e as diferenças contextuais. Existe o perigo real dos fundos externos adulterarem o desenvolvimento das organizações locais e debilitarem o elo entre elas e o seu eleitorado.

Numa reunião em Budapeste em Setembro de 2011, um participante agrupou a experiência da Europa Central e do Leste em três temas: países onde os jovens controlavam a economia e a política; países onde os jovens tomaram o controle da economia e os velhos mantiveram a política; e, finalmente, os países onde os velhos mantiveram o controle de ambas. A região árabe poderia se beneficiar na aplicação de estas perspectivas e extrair a lição aprendida copiando os resultados positivos e evitando os fracassos. O intercâmbio filantrópico entre as duas regiões pode ter sido muito útil e poderia evitar a reinvenção da roda. Uma lição maior parece ser: não imponha soluções e deixe que se desenvolvam soluções locais;  estas serão mais sustentáveis.

Qual é o caminho do setor?
É muito revigorante observar o incremento de interesse por parte de muitas fundações internacionais e aspirar esperançosamente por novos enfoques para desenvolver organizações bilaterais e multilaterais.

Novamente no Fórum do Leste, em Riga, questionou-se o motivo dos países europeus apoiarem o Norte da África. A resposta é que a construção de uma sociedade livre e vibrante com oportunidades de todo tipo significará menos imigrantes na Europa enquanto que muitos árabes do Norte da África retornarão aos seus países de origem se achar que terão uma vida razoável.
No entanto, o envolvimento de doadores internacionais requer uma orientação local de modo a se encaixar às necessidades locais e não a agenda do doador. No clima de hoje, as pessoas esperam e demandam o “controle da agenda”, o que requer um novo nível de transparência na relação doador- beneficiado.

Como foi assinalado na reunião do Fórum de Fundações Árabes de Maio, existe uma tendência por parte dos filantropos de se colocar à parte de aqueles que eles servem. Os filantropos têm que reconhecer que  fazem parte integral da sociedade civil e que compartilham a responsabilidade dos seus problemas e debilidades. Isto significa entre outras coisas que o setor terá que resolver ou aguentar as mesmas tensões com a sociedade.

Só para mencionar alguns dos debates: o secular versus o religioso; a insistência das mulheres de fazer parte de todas as atividades; a pressão pela inclusão; a demanda por mais transparência e responsabilidade do retorno do investimento no social; o afastamento do setor privado “sustentando” a filantropia “sustentada” pelo governo (comumente pelas esposas do governante); uma análise das éticas de doar; um debate da caridade versus justiça social; o nível apropriado de correspondência às necessidades das comunidades e a questão sobre ser político ou apolítico na procura de justiça.

Dependendo de como o setor administrar essas tensões se decidirá de que lado está na região árabe. Ser responsivo às necessidades das pessoas requer da filantropia um passo à frente em sintonia com a sociedade. Movimentando-se no seu ritmo, corre o risco de ficar irrelevante. Movimentando-se muito depressa corre o risco de ser acusada pelos movimentos populares de apropriar-se do controle da agenda ou, por outro lado, ser acusada pelo governo de ser “política”.



*Atallah Kuttab é fundador e Presidente da SAANED for Philanthropy Advisor na região árabe. Ele é também fundador do Fórum de Fundações Árabes e o Arab Human Rights Fund. De 2005 até  2011 foi diretor geral da Welfare association. E-mail: akuttab@saaned.com    

FONTE: GIFE